Breve Esquisso sobre A ARTE VISUAL EM CABO VERDE
Por: Danny Spínola
Em Cabo Verde, no domínio das artes plásticas, apesar do boom de pintura e escultura produzidas ultimamente, praticamente não havia, anteriormente, grandes obras artísticas, nem no domínio da arquitectura, nem da pintura, nem da escultura-monumental, não obstante algumas referências importantes, como Jaime de Figueiredo, Abílio Duarte, Pedro Gregório, Luís de Melo, entre outros.
No entanto, há uma tradição muito forte de artesanato nacional, nomeadamente, em termos de olaria, cestaria e panaria, para além de trabalhos de artesanato, bastante artísticos, em cascas de coco (candeeiros, taças, guarda-jóias, etc.); em chifres (barcos, peixes, pássaros, animais diversos, etc.); com carapaças de tartaruga, principalmente adornos femininos (anéis, brincos, pulseiras, colares, fivelas de cabelo, berloques, etc.) e em conchas, búzios e vegetais, usados na produção de objectos decorativos, e na confecção de pulseiras, argolas, colares, etc.
E aqui, uma menção particular merece a panaria cabo-verdiana, não só pela sua arte, mas também pela importância que teve ao longo dos tempos, tendo servido de moeda de troca e de símbolo de riqueza.
Relativamente às artes plásticas, convém falar aqui, essencialmente, da tecelagem e da pintura, que conheceram uma reviravolta de mais de 180 graus, em termos de criação e produção nos últimos tempos.
E é importante frisar a revivificação que se observou na tecelagem, com a recuperação dos tais panos de terra (“Panu Bitxu” e “Panu d’Óbra”), bem como a aposta feita na tecelagem de tapeçarias artísticas, com temáticas cabo-verdianas, e na do bátik, e da forte aposta na cerâmica, que se desenvolveu extraordinariamente, passando da produção de objectos essencialmente utilitários, para uma produção diversificada de objectos artísticos e ornamentais, com carácter de souvenir. A escultura em madeira teve o seu momento alto nessa época, com temas sobre a escravatura, temas revolucionários e da vivência quotidiana da população.
Realmente, de há cerca de 30 anos para cá, a arte visual em Cabo Verde sofreu uma evolução considerável, ganhando foros de vanguarda, dentro de uma óptica modernista. Mário Rito e Reré, Sota, Luís Tolentino, Leonel Madeira e Pulú, Maria de Lurdes Vieira, Maria Alice Fenandes, e Djim Graça, de entre outros, desenvolveram um pouco a técnica, a temática e a representação escultóricas, e os trabalhos em coco dos Centros de Artesanato das ilhas de Santiago e de São Vicente progrediram consideravelmente com excelentes trabalhos, enquanto significativos pintores procederam a experimentalismos abstraccionistas, impressionistas e expressionistas, imprimindo novas técnicas e novas linguagens à pintura. Menção especial e particular merece Idá Abreu, escultor e pintor a viver em França, que tem feito uma escultura de grande finesse.
A pintura em Cabo Verde, de facto, não teve uma força e uma presença relevante no período colonial, como aconteceu com a literatura, mas foi marcada por alguns momentos e alguns pintores de mérito e criatividade.
Não se pode, de facto, falar de uma pintura cabo-verdiana dessa época, portadora do mérito da, hoje, tão propalada e famosa cabo-verdianidade – forma de se referir à identidade cultural cabo-verdiana –, na medida em que, à parte alguns trabalhos pictóricos, cujo processo construtivo e temático não passa de ligeiras projecções clássicas, enformadas de impressionismo, só se pode mencionar algumas personalidades, nessa lide, mas que não chegam a impor-se no sentido de criarem uma forma de protesto ou de radiografar a realidade sociocultural cabo-verdiana nos seus múltiplos aspectos. Nessa linha, é de se referir aos traços vigorosos e às caricaturas de Jaime de Figueiredo, em linóleos e cartolinas para o Boletim Cabo Verde; a Pedro Gregório e às suas linhas gráficas, também, constantes do Boletim Cabo Verde, e alguns outros pintores, nomeadamente: Jacinto Rocha, Abílio Duarte, Amílcar Duarte e Aristides Hugo, entre outros. É ainda mister fazer referência ao Luís de Melo, eminente caricaturista e colaborador do Boletim Cabo Verde, cujo quadro célebre e imponente se encontra no Cachito, constituindo uma amostra significativa de uma certa tentativa em relevar a situação de colónia, então vigente em Cabo Verde, ainda, que de uma forma aparentemente passiva, através da historiografia do café e da sua metamorfose, desde a sua apanha pelos ilhéus escravos até ao seu consumo pela elite pequeno-burguesa branca.
Na verdade, a história da pintura cabo-verdiana só ganha contornos após a independência nacional, em que houve uma certa massificação e um nítido encorajamento no sentido de se investir em tudo o que seja cultura autóctone, tendo, por conseguinte, surgido a fase do grito de liberdade e de busca das raízes, na qual imperou a febre do nacionalismo revolucionário. Esse período está impregnado de pinturas nativistas e intervencionistas – na linha da arte comprometida, engajada –, em que se sobressaem, como que em cânticos, figuras de heróis pátrios e universais; paisagens agrestes e ressequidas; cenas de trabalhos vários, alguns de cariz esclavagista, e marcados pelo realismo social; aspectos degradantes da sociedade, tais quais a fome e a miséria; e o canto à luta e à liberdade, a par do retrato fiel de paisagens pitorescas e da natureza morta, realistas e impressionistas. Nessa esteira encontram-se Domingos Luísa, Lú di Pála, Ruja, José Maria Barreto, Pedro Martins e Osvaldo Azevedo, de entre vários outros.
Com a crescente abertura do espaço ilhéu cabo-verdiano ao mundo, quer através de formações no exterior, quer com as exposições de pintores cabo-verdianos em outros países, e das de artistas de outras latitudes em Cabo Verde; quer ainda com o advento dos mídias que possibilitaram a diluição de fronteiras físicas e o contacto permanente com outras realidades, a pintura cabo-verdiana sofreu uma evolução considerável, na peugada da modernidade reinante.
Assim é que nos deparamos, de há cerca de 30 anos para cá, com uma movimentação constante de artistas plásticos cabo-verdianos dentro e fora do país, sendo de se destacar o papel dos prémios nessa prolífera criatividade, que se consubstancia, muitas vezes, em obras de mérito, na linha dos mais modernistas pintores contemporâneos.
Realmente, a arte visual em Cabo Verde, mais concretamente a pintura, tem conhecido, nos últimos tempos, uma fase bastante dinâmica e interessante, marcada por grandes transformações ao nível da performance estritamente pictórica e ao nível de um recrudescimento impressionante quanto à realização de exposições, e que se vêm repercutindo de forma salutar, pedagógica e satisfatória, interactivamente, no seio da população, a qual tem manifestado, por sua vez, um maior interesse por essa actividade e uma cultura um pouco mais requintada no que concerne à apreciação da arte, enquanto produto eminentemente estético e criativo, e não meramente utilitário.
As exposições de pintura têm sido, ultimamente, uma constante em Cabo Verde, pautando, quase todas elas, por uma linguagem nova e inusitada, tendo em conta, inclusive, a quase inexistente tradição desse labor no nosso meio cultural.
É de se realçar, contudo, que essa nova fase é caracterizada, também, por uma nova roupagem, ou por uma roupagem que constitui novidade em Cabo Verde e que se alimenta de um invólucro modernista e contemporâneo, na linha das revoluções pictóricas mais recentes, acontecidas nos E.U.A. e na Europa, cujo húmus caracterizador assenta num princípio de incomunicabilidade e de hermetismo, e que, na pintura, é patenteada principalmente nas exposições de pintores cabo-verdianos da diáspora que têm, felizmente, demandado Cabo Verde com frequência para exporem as suas obras, tais como Mito, Nelson Lobo e Xand Silva.
Os residentes, na sua maioria, possuem uma linguagem pictórica mais consentânea com o realismo clássico, com pitorescos quadros paisagísticos e fiéis retratos de pessoas, na base de cores tradicionais, excepções feitas: a Manuel Figueira e à sua heterogeneidade sígnica e policromática, quais modelos impressionistas e expressionistas; a Tchalé Figueira e ao seu expressionismo chagalista, caracterizado por figurativos deformados e cores gritantemente contrastantes ou, ainda, por algumas incursões surrealistas, na esteira de um Dali, experimentadas, principalmente, por Domingos Luísa, que tem perseguido também a linguagem do tachismo informalista, aproveitando materiais naturais e artificiais na composição dos seus quadros. O mesmo se pode dizer também da Bela Duarte e da Luísa Queirós com os seus quadros fantásticos e simbólicos, plenos de um fabulário onírico e de um real maravilhoso, alguns naïves, outros picassianos e um pouco surrealistas, compostos também em batik e tapeçarias, um pouco à semelhança da pintura dita primitiva e das figurações hindus.
Convém aprofundar um pouco a apreciação de alguns desses pintores cabo-verdianos, residentes em Cabo Verde, que se encontram em sintonia com a arte contemporânea, começando por Manuel Figueira.
Na linha da nova vaga de pintores cabo-verdianos que persegue o abstraccionismo, vamos encontrar: Mário Lúcio com quadros de figurações abstractas e expressionistas, cheias de empastes e manchas de tintas, ou com sobreposições de linhas e de riscos, ou de explosões de cores exuberantes, mescladas de algumas formas figurativas, mas muito esbatidas ou labirínticas, ou um pouco à moda do Action Painting de Pollock.
Dentro dessa vaga de pintores cabo-verdianos modernistas contemporâneos, pode-se ainda destacar-se os nomes de Djosa e a sua pintura onírica e fantástica, com uma forma e um estilo muito próprios de pintar, embora seguindo um certo geometrismo e interseccionismo figurativos, em que se sobressai a sua obsessão pelo falo que está presente em quase toda sua obra gráfica; e de Paulo Rosa com a sua linha à moda dos impressionistas ou mais próxima ainda dos simbolistas, com um estilo, às vezes, de pintura que parece primitivo, com contornos bem delineados mas sem uma forma figurativa nítida, ou concreta, em que predominam os temas sociais e populares, às vezes com pinceladas que apenas sugerem alguma coisa: silhuetas de pessoas ou de coisas sobre um fundo indefinido de cores brilhantes ou pálidas, em geral claras, em superfícies planas.
David Levy e Kiki Lima, por outro lado, são os mestres da técnica de pintura difusa, sem contornos bem definidos e que exploram a vivência sociocultural de Cabo verde na linha de uma certa estranheza e da performance impressionista, compondo as suas estruturas pictóricas baseadas em decomposições de cores a partir da utilização de silhuetas e figuras esbatidas, sem contornos bem definidos, ou de manchas de tintas e de cores sobrepostas e esbatidas.
É de se acrescentar que a crescente tendência para a representação do onírico, do fantástico e do absurdo, ao lado de um certo erotismo, patentes na última vaga de pintores cabo-verdianos, mostra que Cabo Verde possui neste momento uma plêiade de pintores bastante heterogéneos, tanto no domínio da técnica como no da temática, que abrangem desde expressões e linguagens realistas, surrealistas, concretistas, etc., e que retratam todos os quadrantes da sociedade cabo-verdiana – social, político e religioso –, como ainda questões metafísicas e filosóficas.
David Levy Lima é um pintor de finíssima têmpera que tem trilhado a senda do impressionismo de uma forma magistral e triunfal.
Tendo o homem e a natureza como cerne das suas obras, David Levy imprime uma leveza e uma subtileza às suas pinceladas e trinchas que tornam os seus quadros portadores de uma linguagem ambígua, ao mesmo tempo que simples, numa mística estética entre o impressionismo e o abstracto.
Isto é, as pinturas de David Levy Lima possuem uma aura dialética devido à forma sábia como manipula as cores em manchas largas e finas, sobrepostas e dispersas, em superfícies lisas e cintilantes, plenas de vibrações e reverberações, de nuances estriadas e sombreadas, conferindo aos seus quadros uma atmosfera de certa iridescência, ígnea e sinestésica, de estranheza metafísica, ao mesmo tempo que nos encanta com um universo exótico e fantástico, quase que virtual, que nos dá a impressão de não ter correspondência com qualquer cenário ou realidade vivida ou sonhada, não obstante estarmos conscientes de que está a referir-se a uma realidade concreta, táctil, palpável.
Ele joga com a ordenação das perspectivas, com a manipulação dos contrastes, com o caldeamento das texturas, com a tessitura das luzes e dos brilhos, de forma a criar um mundo de visualizações e percepções sugestivas e sedosas, e de representatividades conotativas, fluídas e difusas, tais as performances de marca das vanguardas da pintura contemporânea.
Na verdade, as suas obras constituem como que um convite ao nosso olhar à contemplação serena e beatífica, pela sua capacidade de estimular a nossa participação no descobrir de um novo mundo, de uma nova realidade, palpitante e plena de sensações.
Domingos Luísa é um pintor que se fez a si mesmo. Com um percurso marcado por uma profunda dedicação a essa arte, tem hoje um carisma e uma presença de mérito, indiscutivelmente de qualidade, nessa área cultural cabo-verdiana. Uma vasta produção e exposições várias mostram isso, quanto mais não seja pela sua criatividade e pela sua profundidade de comunicação.
A forma como encara a pintura, patenteia-se indelevelmente na mestria e nos jogos de cores, do claro-escuro, da composição cromática das cenas, dos espaços e das coisas, com que vai compondo a sua galeria da vida, cujo profundo enraizamento do ser nas palpitações quotidianas da realidade professa verdades naturais. Não se pode dizer que ele seja realista, pura e simplesmente, nem tão pouco simbolista ou surrealista. Utiliza tanto a forma como a cor de um modo natural, conseguindo, entretanto, projectar-se como um grande criador, através do enquadramento, ou melhor, da surpreendente conjugação de realidades aparentemente alheias entre si, a qual confere às imagens uma movimentação imaginativa fabulosa, de incontestáveis beleza, harmonia e sensibilidade que cativam até ao âmago.
A cor, a composição de cores quentes e frias, que se surpreende nos seus quadros, retratam o interior de uma personalidade forte e transmite uma sensação tanto de agitação como de paz, de turbulência como de bonança, ; de escuridão como de luminosidade. Aliás, quanto a ele, “as obras falam por si e o verdadeiro artista não tem limitação, pois não existem barreiras para a sua imaginação”.
Para ele, “a maneira de observar de um artista se define consoante a cultura, os usos e costumes da latitude em que se encontra e, também, do convívio e do modo de pensar daqueles (e de tudo aquilo) que o rodeiam, como sejam: o homem de movimentos definidos, de passos largos e firmes, tronco erecto, adaptável às montanhas, ao mar verde, à rocha nua e ao céu brilhante”.
Artista ecléctico, com um extraordinário domínio da técnica da pintura, Domingos Luísa tem experimentado vários estilos de pintura, tendo já feito várias exposições com quadros do género cubista e picassiano, do tipo surrealista ou daliniano, e ainda na linha dos expressionistas, dos impressionistas e de um certo informalismo.
A verdade, no entanto, é que ele se evidencia essencialmente pelo seu excelente domínio do desenho e da técnica do retrato, resultando daí quadros maravilhosos na peugada dos melhores clássicos naturais do realismo, tal um Miguel Ângelo ou Ticiano, retratando a paisagem e o quotidiano cabo-verdianos, o mesmo se pode dizer dos seus retratos que possuem uma pureza de traços e de sombras digna de grandes pintores e um pouco na senda de um Da Vinci ou de um Goya, ou de um Degas.
Artista plástico multifacetado, Domingos Luísa revela-se ainda como um excelente escultor, com um bom domínio das técnicas da escultura e um bom conhecimento do corpo humano, das relações artísticas, das proporções e do volume, e, em suma, dessa arte, tendo já executado vários bustos e estátuas, ao natural, em Cabo Verde e em Portugal.
Da mesma forma se pode falar da sua faceta de excelente designer e de decorador que tem sido bem evidente nos diversos trabalhos de marketing e publicidade, confeccionando cartazes publicitários, murais, plaquetas para diversos fins; ou decorando bares, restaurantes, boutiques, e, mesmo, montando cenários para teatro e programas televisivos.
Se tudo isso demonstra talento e dom artísticos, não deixa também de revelar uma grande capacidade técnica e laboral. Às vezes, até dá a impressão de que não explora totalmente a sua capacidade criativa devido às múltiplas solicitações concretas de que é objecto, e que é um pouco subaproveitado neste nosso pequeno torrão onde o déficit de escultor monumental é flagrante, assim como o déficit de monumentos próprios.
Autor de inúmeros quadros, espalhados por diversos serviços públicos, e com um nome já feito em Cabo Verde, para não dizer grande fama, Domingos Luísa é, no entanto, um artista simples e modesto, que vê o mundo sob o prisma da arte, em que o belo e o maravilhoso estão sempre presentes.
Não sendo pintor quimérico, nem megalómano, ele trabalha muito e está sempre movimentando, criando, construindo, e vivendo a satisfação de pintar e pintar sempre, com a alma, com brio e com toda a força da sua técnica e da sua estética que, bem se pode dizer, é são das mais conseguidas e perfeitas em Cabo Verde, sendo um primor os seus quadros com os quais podemos dialogar, pois são de uma expressividade e fulgor cativantes; e bem se pode sentir através deles a busca de uma sinergia entre o mundo exterior e o seu/nosso mundo interior cheio de cogitações e sentimentos.
Quanto a José Maria Barreto (j.m.b.), o que ressalta logo à primeira vista nos seus quadros, e que, de facto, os caracteriza, são a técnica do carvão que ele utiliza e a capacidade comunicativa de que se revestem.
Sendo os seus quadros de intensa plasticidade temática e de profunda expressividade, temos a sensação, quando os apreciamos, de que mantêm um diálogo coloquial e intimista connosco, criando uma aura de forte empatia e sintonia. Sentimo-nos como se, de repente, tivéssemos adquirido o poder da ubiquidade e da telepatia, diluindo-se o nosso espaço-tempo presente e real no espaço-tempo imanente dos quadros, onde nos integramos e convivemos.
Artista de fina sensibilidade, J.M.B. consegue imprimir uma dinâmica e uma dialéctica inusitadas aos seus quadros, utilizando com mestria as técnicas do jogo de luz e de sombra e do claro-escuro, através dos seus traços e esbatidos que se multiplicam ao mesmo tempo que se contêm e se conjugam, criando toda uma trama de perspectiva, de contornos e de tonalidades que fazem determinadas expressões e movimentos adquirirem um significado próprio e uma determinada força sugestiva. Pressente-se, lá no fundo, toda uma palpitação latente, mensageira, impulsiva, que acaba por ser domada, controlada e equilibrada, em nuances bicromáticas sobre um fundo multi-cromático de um universo a preto e branco.
O carvão assim utilizado catapulta os temas retratados para um ambiente de artística recriação ressumando a um ambivalente dramatismo, de contida tragédia, e a um certo lirismo bucólico e romântico.
Tendo como fulcro central e fundamental do seu labor o Homem e a Vida, as telas de J.M.B. constituem como que um canto, ou uma poesia ao e do povo cabo-verdiano. Ou, melhor dizendo, consubstanciam-se como testemunhos de uma saga, ou a epopeia pictórica cabo-verdiana, em que os aspectos mais significativos dos hábitos e costumes da população, o quotidiano dramático e trágico da vivência ilhoa, bem como uma certa filosofia e postura de vida são captados.
Mas essa captação não é passiva, nem um mero instantâneo; ela é, sim, uma força telúrica, uma explosão de sentimentos, uma teia perceptiva, uma visão intelectiva e uma capacidade imanente, veiculadas por uma paixão e um amor à arte, e é ainda o produto de uma maturidade e de um percurso trilhado, trabalhado e meditado.
Há um olhar clínico e uma mão cirúrgica que vão delineando, traçando e descortinando todo um mundo de sonhos e de pesadelos, de vida e de morte, de existência e de vegetação.
Há uma sensibilidade ingente e um saber exacto que vão orquestrando toda uma composição de postura, de enquadramento, de expressões, de linhas e de sombras que projectam uma infinidade de sensações.
Há um ritmo próprio, há uma visão particular, há um modo e uma forma certa de sedução e de convivência entre o artista e o seu meio e objecto de expressão, que fazem com que haja um estilo próprio e uma marca inconfundível, que relatam um determinado e específico jeito de estar, de mover, de sentir e de fazer no mundo da arte. Sendo certo que a maioria dos quadros de J.M.B. se caracteriza por uma sobrevalorização temática, não é menos certo, porém, que essa sobrevalorização acaba por se subordinar ao pendor estético, com o qual se harmoniza, evidenciado pela relação ambígua e metafórica que se estabelece entre a realidade e a imagem, fruto de uma criatividade do artista.
Isso é tanto mais certo, quanto mais atentarmos nas linhas fusiformes das figurações, presentes na maioria das telas, e, principalmente, na impressão da irrealidade perpetuada.
Propiciando às imagens a recriação de uma realidade de forma tão pouco mecânica e tão distante do realismo clássico, ao ponto de chamar a atenção do espectador sobre uma determinada realidade já agora metamorfoseada, conquanto subjectiva, e, portanto, estético-artística, que é o mesmo que dizer original e genuína.
Daí o ocorrer de um certo abstraccionismo figurativo e de um expressionismo que nos subjuga a alma e a vira do avesso, com um crescendo estético dado pela respiração a preto e branco de um ambiente, necessariamente, onírico, transfigurado e distante de uma natural fixação e, como diria o poeta, “de uma tristeza confrangedora qual infinito dentro do peito, ou um rio sem fim metido na alma”.
Kiki Lima (Euclides Eustáquio Lima) é um pintor de referência em Cabo Verde, em Portugal e em vários meios artísticos internacionais, devido à sua paleta única e à expressividade das suas pinturas que se caracterizam, principalmente, por um certo dinamismo cromático e gestual, e por uma certa veemência na forma como pinta imprimindo movimento e expressão às suas composições.
Com uma capacidade fina de explorar os recursos telúricos e tradicionais da cultura cabo-verdiana, quer captando de memória os auspiciosos momentos da arte cabo-verdiana – música, dança, dramas, etc. –, quer reelaborando-os e recriando-os a partir de fotografias, com uma técnica e performance depuradas pela sábia utilização da espátula, das tintas e das cores, que criam uma atmosfera de realidade sonhada, pelo difuso das figurações e transfigurações das imagens, diluídas; mais esboçadas e sugeridas do que pintadas, tão características do impressionismo.
Navegando entre o rigor do conhecimento técnico e a liberdade de criação, Kiki Lima, interpreta e reinterpreta a realidade do quotidiano cabo-verdiano de uma forma aparentemente simples e natural devido às suas pinceladas, ou à forma como controla a tinta na tela, fluída e maleável, de muita plasticidade e mobilidade, que conferem aos seus quadros uma ambiência simbólica, de cor, de luz, de luminosidade e sombra, claras e transbordantes, todos evocativos de sentimentos e abstracções várias.
Tendo como tema principal da sua pintura a cultura cabo-verdiana antropomorfizada, isto é, tendo o Homem Cabo-verdiano como centro, ou protagonista de todos os seus quadros, Kiki Lima procura, no entanto, captar, principalmente, o sentimento, a alma e a expressão mais autêntica e pura desse homem, nas suas múltiplas actividades, quer retratando-o no seu espaço folclórico de manifestações culturais tradicionais, tais como o kolá S. João, o batuku, a tabanka, ou nas músicas e danças cabo-verdianas como a coladeira, o funaná, a morna e a mazurca, etc., quer ainda no seu dia-a-dia, pejado de incidentes e histórias várias como a pesca, a faina agrícola, a emigração e a venda no mercado, de entre várias outras derivas.
Quando olhamos para os quadros de Luísa Queirós temos a impressão, de imediato, que estamos perante um trabalho meticuloso e pormenorizado. Mas o que nos impressiona mesmo e subjuga é o poder do simbólico que se evidencia em cada traço, linha e cor das suas composições. Sentimos a força do invisível aí, perante o visível que nos apresenta. Temos a percepção clara de que há uma trama, bem urdida, que se oculta por detrás dos ícones e das composições de cores que se nos apresenta. Há uma oficina e um universo ficcional, com figurações descritivas e narrativas orgânicas.
Ela pinta como se estivesse a contar histórias, enchendo as telas de imagens e de pormenores que se misturam, se imbricam umas nas outras, e se dialogam para nos comunicar algo, para nos sussurrar algum segredo, de uma forma enigmática, subtil, e, às vezes mística.
E pinta como se estivesse a conceber um puzzle para ser montado (ou descodificado) por quem vê, pelo interlocutor interessado e avisado; e pinta num desafio ao olhar e ao «paladar» do senciente, daquele que quer deixar-se contagiar pela magia da sua linguagem de cores e de mito, que se exsudam dos seus quadros, utilizando uma paleta própria e recorrente entre o azul e o verde, com o amarelo, o vermelho e o castanho em contraponto.
Ela orquestra os seus quadros numa linha e estilo próprios em que o predomínio dessas cores, quase que de forma obsessiva, mas numa sequência variada, e com nuances precisas, nos dá a confirmação de um labor de marca, de performance inconfundível.
Aquilo que ela pinta e a forma como ela pinta afiguram-se-nos como um «Ars Poético» que nos remete para o campo da semiótica na sua interpretação, e na sua perceptibilidade, pois sentimos que o que vemos não é pura e simplesmente o que vemos; sentimos que há um mundo latente e germinal, potencial, por decifrar, por desvendar, por detrás daquilo que percepcionamos, e que o que sentimos é mais do que aquilo que cremos que sentimos.
Somos catapultados imediatamente para um mundo de confabulação onírica, de hieróglifo, de trama genesíaca.
Não há dúvida alguma de que Luísa Queirós elabora os seus quadros, em primeiro lugar, in mind, à luz de uma reflexão profunda e de uma concepção minuciosa que depois vai forjar e depurar com a têmpera da emoção e do entusiasmo de recriação, no acto e momento de pintar, em que a paixão e a imaginação se soltam e ganham terreno relativamente à rédea da racionalização e premeditação criativa.
O seu poder de pintar de forma metafísica remete-nos para um mundo de ponderação e cogitação sobre a vida e o mundo, sobre as coisas visíveis e invisíveis, nomináveis e inomináveis.
Falar dos temas da pintura de Luísa Queirós é falar de um mundo de dramas e de tramas, às vezes psicanalíticas, e de uma trajectória de pesquisa que implica um conhecimento real e imanente, que ela, no entanto, reelabora e rescreve com um léxico próprio e uma perspectiva própria, tais os “frescos” sobre a mundividência da família cabo-verdiana e os seus encontros e desencontros, os seus problemas existenciais e as suas desditas e angústias, donde advém um certo tom expressionista presente em alguns dos seus quadros que se primam por uma galeria de tipos, com rostos e semblantes exprimindo uma heterogeneidade de expressões e sentimentos rebuscados da interioridade do ser.
Quanto a mim, Manuel Figueira é um artista de mérito, cheio de talento, com uma rica criatividade e uma técnica invulgar, e que nos deixa maravilhados com os seus quadros.
Começou a pintar quando tinha 12 anos.
Depois foi para Portugal, onde esse seu hábito de desenhar ao natural – pessoas em movimento, prédios e coisas ao vivo – possibilitou-lhe uma certa vantagem em relação aos seus colegas portugueses, a qual se traduziu numa rápida apreensão e no domínio da técnica da pintura.
Depois de ter concluído o curso das Belas-Artes, ele foi ficando em Portugal, leccionando e participando em algumas exposições colectivas, por um lado, porque a sua mulher era portuguesa, e, por outro, devido ao controlo rigoroso da PIDE sobre todos os potenciais activistas políticos.
Ao regressar a Cabo Verde, foi apurando o seu gosto pelos temas da realidade quotidiana e pelos espaços livres e naturais: tal um jardim, uma esquina, o mercado ou, ainda, paisagens variadas.
O seu método de trabalho baseia-se, fundamentalmente, na abstracção, mas também na investigação e na exploração da sua grande sensibilidade relativamente ao mundo que o rodeia. Entretanto, o ponto de partida para todas as suas obras é a realidade que o cerca, na qual o ser humano, com toda a sua plasticidade interior e exterior, é a figura de proa.
Na verdade, a principal intenção de Manuel Figueira, quando pinta, não é tão-só retratar a realidade nua e crua, de forma escancarada e de leitura única, por demais evidente e elementar, mas, sim, criar no espectador a possibilidade de interpretar, à sua maneira, o que vê, de recriar ou reinventar o quadro que aprecia, interrogando-se sobre as inúmeras possibilidades ou caminhos que deve seguir para encontrar a mensagem transmitida, ou, mesmo, imaginar sobre o inimaginável, tornando-se, ele próprio, um pintor pleno e vibrante, ainda que efémero. Isto porque ele não gosta de facilitar e entregar tudo numa bandeja.
O artista deve, pois, procurar sempre a transcendência, procurar sempre algo que ultrapasse a simples e banal realidade.
Não há dúvida que Manuel Figueira é um poeta da pintura, que utiliza as cores, os traços, as estruturas e as composições metaforicamente, isto é, em comunicações plenas de significados e repletas de sugestões, enfim, em verdadeiras poesias de mensagens perenes. O seu objectivo é ter Cabo Verde em tudo o que faz, mas sempre pela via da universalização, pelo que tem vindo a dedicar uma especial atenção aos prédios da cidade do Mindelo, os quais, segundo ele, têm uma história interessante.
Na verdade, ele vê o artesanato e as artes-plásticas não como coisas antagónicas, mas, sim, complementares, que poderão dar bons frutos.
Manuel Figueira, entretanto, salienta que, apesar de toda essa sua tentativa de criar um estilo próprio, ele tem, também, um lugar-comum, e tem tido algumas influências, ao longo do tempo, ainda que remotas, como, por exemplo, a do de Portinari (que ele muito admira), em algumas pinturas e ilustrações do “Capitão Ambrósio”, de Gabriel Mariano, ou a do seu grande Van Gogh e do ilustre Miguel Ângelo, que nos esmaga com a sua arte, e, como não podia deixar de ser, consoante as suas palavras, a de Goya, que o encanta com a sua ausência de preconceito e de academismo.
Aliás, ele acha que tem uma certa afinidade com este mestre da distorção e da deformação das figuras, na medida em que segue, muitas vezes, esse rumo satírico do seu período negro e diabólico.
Quanto à pintura cabo-verdiana, ele diz que há dois momentos a considerar: o período antes da independência, apagado e silencioso, em que havia vários indivíduos habilidosos, mas reprimidos pelo regime colonial e sem meios nem estímulos para prosseguirem, e o período pós-independência, no qual se pode notar um dinamismo e uma evolução evidentes, graças às inúmeras exposições de estrangeiros em Cabo Verde e de cabo-verdianos no estrangeiro, embora não se deva pensar, segundo ele, que temos muitos artistas, porque bem diferente é um indivíduo habilidoso, que necessita de formação e de criatividade, de um artista.
Relativamente a Misá, a pintora dos sete sentidos, tem quase que uma pintura espontânea que lhe sai do fundo do ser e da alma.
A pintura de Misá parece brotar naturalmente como um regato no leito de uma ribeira. É uma pintura que flui e se espraia, quase que ao acaso, mas sob o comando de uma rédea de paixão e de afã de viver. É uma pintura intensa, de fulgor onírico, às vezes metafórico, e poético, às vezes simplesmente naïve, palpável, tangível, qual melodia nas cordas de um violão. : É uma pintura livre que se debruça sobre a liberdade de sentir e de expressar, de amar e de viver.
Com uma certa obsessão pelas formas côncava e convexa, as temáticas das pinturas de Misá quase que se engravidam, de forma recorrente, de imagens da lua nas suas diversas estações – crescente, minguante, nova, cheia, em apolíneas vertentes, imbricadas construções, transfigurando e travestindo as coisas e a natureza (o céu, o sol, a terra, o verde, o seco, a noite, etc.) em signos e símbolos plenos de luz. Até o caminhar dos homens e dos bichos, dos anjos e dos demónios é captado de forma malabarista e expressiva, quais subjectivas miragens de oásis plenas e eloquentes.
Há como que um exorcismo, nos seus quadros, da solidão e da melancolia, carregando as suas mensagens, subjacentes, de solidariedade e ansiedade; de partilha pelas cores e pela forma que utiliza, que nos remetem para um mundo um pouco místico, entre o sentir total, a esquizofrenia, a reminiscência e o sonho.
Misá possui uma linguagem inovadora, em termos de paradigma cabo-verdiano, com um código próprio de pintar, demonstrando uma individualidade, fruto do hibridismo cabo-verdiano.
Tendo como “ponto de fuga” dos seus quadros a realidade do dia-adia, imprime, em contraponto, uma mecânica de transfiguração, com um dinamismo interno, expansivo e revolucionário, através de transgressões várias que impregnam a sua pintura de uma gramática poética nova, como que numa linguagem orgíaca de intensos orgasmos metafóricos
Quanto ao Mito, é preciso falar do seu eclectismo estético que vai do expressionismo, patente na utilização das cores e de transfigurações, estas muitas vezes em jeito dadaísta, à exacerbação da interioridade e ao abstraccionismo expressionista, geométrico e conceptual, expressos nas cores, nas formas, nos anti-figurativos, nos escrituralismos e nas transgressões das coisas e da realidade.
De facto, a obsessão da escrita está bem latente nos quadros do Mito – quer em escrituralismos incompreensíveis, confundidos com as cores que se lhes sobrepõem, quer em recortes de jornais ou colagens de textos, por entre traços e arabescos de poemas – e inconsútis, às vezes, ao lado de silhuetas e traços grossos, fortes, duros, informais. São password significativos para o nosso percepto, que fazem com que todos os dados, que inicialmente se nos afiguravam inequações, se transformem em simples equações, resolúveis à luz de um exercício matemático de abstração.
De qualquer forma, é de se dizer que o tipo de pintura feito pelo Mito é bastante original, relativamente ao arquétipo cabo-verdiano.
Sintonizados com a estética contemporânea, universal, devido à correlação ou interseccionismo que possui com as técnicas e estéticas modernistas, os quadros do Mito tornam-se altamente imagéticos e ambíguos, devido, exactamente, a essa capacidade de suscitar uma multiplicidade de interpretações.
Encontrando-nos frente a uma linguagem, preponderantemente, simbólica, iconográfica e multidimensional, conseguida através do acasalamento feliz entre as cores, a grafia e as figurações, mais os jogos do claro/escuro, das manchas e dos emplastros, a nossa leitura e a nossa interpretação se complexificam num verdadeiro entropio, em que toda a construção, no sentido de uma compreensão, desemboca numa desconstrução ou em interpelações várias.
Acrescente-se a esse prisma caleidoscópico, do enunciar e do sentir, os recortes abruptos ou as manchas uniformes e sincrónicas – estigmas de acutilantes contrastes, desafiadores e apelativos – confrontados com imagens esbatidas, figurativas, abstractas, deformadas ou sobrepostas, que se impõem como grandes desafios ao olhar e ao entendimento, salvaguardando a verbalização, que desempenha um papel ‘’protagonizante’’, qual chave ou ponte que nos franqueia o outro lado das coisas ou o atingir da outra dimensão das questões. E não há dúvidas de que o repto ao voyeur é muito forte.
Passando aos temas abordados pelo Mito, a primeira coisa a avançar é que quase só se pode fazer afirmações com um halo de interrogação a envolver tudo. Há sempre laivos de incertezas em todas as possíveis certezas adquiridas, pois, é difícil divisar os temas implícitos em cada quadro. Entretanto, pressente-se que há uma dimensão lírica, satírica, humana e onírica, sobrepujadas por uma grande dimensão puramente poética, decorrente do delírio técnico-formal das suas pinceladas e dos seus rabiscos.
Questões metafísicas e existencialistas ganham ressonância no mundo hipersensível criado pelo artista – um mundo muito seu, mas com impacto directo na reflexão dos outros.
A tristeza, a espera, a procura, a resignação e a fatalidade dos homens, dos animais e das coisas, estão bem patentes na cor pálida e escura, rasgada por pequenas chispas de claridade, ínsita em cada quadro.
Há um tom erótico, não explícito, mas implícito nas formas e símbolos, sugestivos, delineados em traços, riscos e arabescos, sob os quais subjaz todo um mundo natural, uma vida latente, que atinge um espaço cósmico, principalmente, quando se insinuam ícones solares, aluarados e matemáticos.
A contemplação do Homem perante o Mundo é uma constante; esse Homem que cresce perante um céu finito, agigantando-se, num eloquente desejo de abarcar o mais além.
É o Homem representado por uma silhueta imponente que conquista o céu e o espaço que o rodeia, sobressaindo-se na tela com os braços compridos e fusiformes, sedentos do éter e do todo.
De facto, a percepção cósmica, aqui, é muito forte. O Cosmos e a sua incomensurabilidade, a sua intemporalidade, transparecem no tudo e no nada das formas-não-formas, das supernovas, dos espaços-não-espaços, das coisas-não-coisas, que acabam por imprimir uma certa sinergia, uma certa movimentação aos quadros; uma afanosa procura, e uma enorme satisfação, insatisfatoriamente saciável.
Entretanto, há momentos em que se pressente o assentar dos pés firmes no chão, onde o mar, o peixe e os pescadores são retratados, assim como a aridez, a secura e a desertificação da terra pobre e desdentada, sob aluaradas luas, numa busca permanente de uma determinada realidade vivida e sentida. Aqui, o azul e o castanho circunscrevem bem as paisagens, as linhas e as acções – espumas de terra sobre, ou sob, basaltos marítimos.
O mar, realmente, encontra-se em evidência, conjugando-se com poemas que nos levam a ter algo mais que uma simples visão marítima, e que nos fala, talvez, do amor; do amor aos peixes que, afinal, é igual ao amor dos homens, numa clara alusão ao desencontro e desencanto – que muitas vezes acontece na vida – entre o amante e a amada, que se distancia em fuga, como num poema de Arménio Vieira, reproduzido numa das telas.
Mutatis mutandis, é caso para perguntar – tendo em conta a densidade de poemas existentes nos quadros expostos – se estamos perante um pintor-poeta, ou um poeta-pintor, ignorando, propositadamente, neste caso, que esses dois pressupostos meios estéticos possuem vertentes comuns que se interpenetram e se confundem.
Falar dos quadros ou da pintura de Nela Barbosa é falar de uma confabulação e de uma vocação à arte e à criação, num espaço-tempo de paixão e razão, onde a convicção, a entrega e o labor se corporizam num fulgor de enunciação e devir.
Através dos quadros de Nela Barbosa, que demonstram claramente que a essência da pintura reside nas cores, podemos aportar a um mundo de sentimentos e sensações que nos transportam a uma infinidade de pensamentos e reflexões, de forma espontânea e natural, sobre o nosso quotidiano e o mundo palpitante que nos rodeia.
A orquestração “tímbrica” da sua paleta de cores, conjugada com o seu amor ao universo antropomórfico e humanístico que nos envolve, dá-nos a dimensão clara do mundo que ansiamos habitar, das necessidades que nos afligem, e dos sonhos que nos transvazam a alma.
Ao percorrermos essa galeria de quadros de Nela Barbosa, temos a sensação de estarmos perante algo original e maravilhoso, que nos seduz e nos concita à meditação e à invocação da luz, da paz e da serenidade.
A energia invisível desse mundo recriado e a magia das cores magistralmente buriladas subjugam-nos, pela forma especial como se comunicam connosco, como se manifestam no nosso inconsciente, invadindo-nos os olhos e o coração de ouro e de sol, alertando-nos para uma outra dimensão da vida.
Quando contemplamos esses quadros, apreendemos facilmente o sentido profundo das coisas, ainda que estejam transfiguradas ou travestidas, e há, nesse instante de encontro entre o olhar e o ver, a consciência da transcendência da vida, que muitas vezes vivemos como meros momentos, transitórios, de prazer.
E há então a consciência da necessidade, íntima, de conhecermos e desfrutarmos, com mais propriedade, as dádivas da vida.
E não há dúvida que esses quadros de Nela Barbosa são dádivas da vida à nossa vida, pois são quadros laborados com amor, com paixão, com espiritualidade, de forma a criar uma realidade vivida em homenagem à arte de viver vivendo.
E se quisermos explorar um pouco o mundo das significações, dos significantes e metafísica desses quadros, é preciso termos em conta a complexidade de que se reveste a contemplação, e compreensão da obra de arte, devido, por um lado, à cadeia de inter-relacionamento dos vários componentes de um quadro, que pode ser diversa, consoante a sensibilidade e vivência do espectador, e até do momento de contemplação e, por outro lado, a própria dinâmica subjacente à interpretação da obra de arte que nos remete para a possibilidade de uma multiplicidade de leitura.
Assim sendo, o que se pode dizer de Nela Barbosa e da sua pintura é que ela possui uma nova forma de abordar o impressionismo, utilizando fotografias da sua própria lavra para compor os seus quadros que acabam por ter um cunho e uma aparência completamente diversos do objecto-ponto-de-partida, devido à maneira como manipula o espaço, as cores, os planos e os contornos decorativos, de forma plasticizante, criando uma realidade outra, às vezes fluida, às vezes palpável, de atmosfera lírica e exótica, entre o figurativo e o abstracto, embora algumas vezes de matiz marcadamente realista.
Tendo a realidade e a natureza cabo-verdianas como pontos de partida para a elaboração da sua obra, Nela Barbosa consegue imprimir uma dinâmica cromática aos seus quadros, plasticizando as cores em manchas grumosas e planas; em pontos espessos e superfícies lisas e líquidas, ao mesmo tempo que cinzela e modela nuances de luz, que transverberam e conferem aos seus cenários e paisagens uma atmosfera de altos e baixos-relevos; de luminosidade e sombra, mas também de jogos de distorção e de transfigurações de imagens, que ora são nítidas, ora esbatidas e indefinidas, ou quase abstractas.
Nelson Lobo, por seu lado, está numa nova fase de pintura com um novo semblante pictórico, apesar de manter ainda a essência daquilo que define o seu estilo.
Vê-se nos seus mais recentes quadros que ele não se preocupa muito com a criação temática, mas sim com a criação cromática e técnica. Isto é, ele escolheu um tema apenas que foi dissecando e diversificando em termos de técnica e de paleta, até conseguir uma heterogeneidade de linguagem, de expressão e de signos, a partir de um único tema baseado em retratos de rostos e bustos de mulher. É preciso dizer, contudo, que esses retratos vão surpreender muitos dos frequentadores desse café pela sua forma inesperada e inusitada, visto que o autor não quis propriamente pintar a beleza dos rostos das mulheres, mas sim o espírito, a alma e os sentimentos que estão por detrás deles. E a surpresa é maior ainda porque não escolheu a forma tradicional, clássica e realista de retrato, que é mais comum entre nós, mas preferiu transgredir essa via escolhendo uma linguagem na linha do pós-modernismo e das pinturas de vanguarda. Escolheu uma forma de traçar as expressões e uma técnica de pintura que, sendo já paradigmático, universalmente, não o é ainda para muitos de nós, cabo-verdianos.
Entretanto, a grande novidade dessa nova face da pintura de Nelson Lobo, e que lhe confere uma dimensão artística surpreendente, advém da sua ousadia e da sua imaginação que o levaram a criar uma linguagem e uma aura nova aos seus quadros, misturando técnicas já cristalizadas de vários estilos e escolas, de forma a erigir como que um novo código de pintura e uma certa renovação do seu estilo.
Tendo, como técnica base da sua pintura, a performance dos impressionistas, mais concretamente do pós-impressionismo, e do neo-impressionismo, principalmente, de Matisse e Cézanne, ele congrega, entretanto, técnicas do cubismo e do expressionismo, principalmente da linguagem picassiana de pintar os rostos e bustos de mulheres.
Paulo Rosa é ainda o exemplo do artista que usa a razão para moldar a sua emoção, procurando uma performance criativa na recriação de um mundo próprio com um clima de surrealismo e mistério. A aura mística dos seus quadros, conseguida através de uma composição insólita e sui generis, catapulta-nos para um ambiente de estranheza e ambiguidade, cheio de novidades e surpresas que nos levam a um estádio de contemplação reflexiva pelo inusitado dos seus temas e das suas pinceladas, próprias de um universo de enredo e de dramatização, não poucas vezes lírico e emblemático (alegórico). Nas pinturas de Paulo Rosa o silêncio e o grito, ; a inércia e a agitação coabitam em perfeita harmonia.
Patrick Monteiro também pinta em sintonia com o pulsar da pintura contemporânea, navegando entre o abstraccionismo e um subtil surrealismo expressionista.
Quanto aos pintores da diáspora que têm exposto em Cabo Verde é de se dizer que todos eles possuem um ponto em comum que os define e caracteriza e que nos leva a interrogarmo-nos quanto à originalidade e à personalidade dos seus quadros, na óptica de um pressuposto identitário. Será que poderemos falar, nesses casos, de pintura cabo-verdiana, ou, então, simplesmente, de pintores cabo-verdianos de mimésis puramente universal, visto que a maioria das exposições feita por esses artistas é impregnada de ressonâncias quase que directas do novo género de arte surgido nos E.U.A e na Europa após os anos 50/60, e que rompe totalmente com as pinturas do século passado – muito aprumadas e naturalistas –, exactamente por se revestirem dessa nova figuratividade, marcada pelas subversões e deformações, pelas iconografias (como fontes de informações), pelos efeitos contrastantes das cores luminescentes e baças, ou das manchas amontoadas, fusiformes e esbatidas que proporcionam, invariavelmente, leituras múltiplas e pessoais, convergidas, não obstante, a um certo existencialismo, angústia, contradição, dilaceramento e conflitos interiores, isto é, a um certo desencontro e procura, a uma certa inconformidade e desaire.
Dos pintores que apareceram mais recentemente, e que tive a oportunidade de analisar um pouco mais aprofundadamente, tenho a falar, em primeiro lugar, de Tutú que, parece-me, pelos quadros que dele vi, ainda não encontrou o caminho que o poderá definir e particularizar, mas já está, isso com certeza, no percurso certo que o conduzirá a um destino risonho, de frutos próprios e férteis. Isso para dizer que ele ainda se encontra em busca de um estilo que o poderá caracterizar e levá-lo a impor, com uma diversidade de opções esmerada e passível de o projectar, com segurança e pertinência, num universo de excelente desempenho.
Alguns dos quadros que até agora pintou, bastante heterogéneos, têm algum eco, evidente, de alguns estilos já cristalizados que não nos permitem tecer afirmações no sentido de uma pintura própria, mas que no entanto, dão-nos margem para afirmar, com firmeza, que estamos perante um pintor de talento com um bom domínio técnico, tanto em termos de desenho como da pintura propriamente.
Por outro lado, alguns quadros, poucos ainda, nesse aspecto, constituem já sementes maduras de um porvir de safra própria de excelente qualidade.
Especificando um pouco, num relance pelos seus quadros, constatamos que, neste momento, ele possui uma paleta que explora os meandros do surrealismo daliniano, um pouco na peugada dos experimentalismos, nesse campo, de Domingos Luísa, com os quadros: “Se Kultura”, “Ravolta Tradicional”, “Parto Difícil”, e “Descobrindo Sons”, só para mencionar alguns.
Ao mesmo tempo, ele percorre as vertentes de um certo abstraccionismo figurativo e do cubismo, tendo, principalmente, nos murais, a tendência para se aproximar da pintura kandiskyana, particularmente forte nos frescos, como: “Chegada”, “Partida”, “Morna” e “Viagem”, de entre outros.
Tendo uma propensão, quase obsessão, para retratar o universo musical, de violas, saxofones, pianos, etc., ele compõe a sua sinfonia de cores de forma sóbria e elegante com numa grande mestria técnica, que se evidenciam principalmente nos quadros mais criativos e imaginativos, que bem poderiam constituir a sua imagem de marca, nomeadamente nas composições: “Xarona”, “Sem Título”, “Duas Lágrimas”, “Direitos Autorais” e alguns outros mais.
É de se destacar também a sua mestria no domínio do retrato em que faz experimentalismos e explorações de técnicas diversas com materiais inusitados, com óptimos resultados, tais como os casos de “Nha Nácia Gomi”, “Cize”, e “Codé di Dona”.
Xand Silva é mais um exemplo dessas exposições que nos puxam pelos cabelos e nos arrastam pela estrada da nossa interioridade em busca de um sonho, de uma fantasia, ou mesmo de um silêncio ou de um grito que nos permite a intelecção do que vemos, e, consequentemente, uma interpretação mais comedida com a intuição inconsciente ou conscientemente processada pelo artista e pela sua estética sugestiva, psicanalítica.
Com predominância de uma técnica mista, ele usa também as técnicas do óleo sobre tela, do acrílico e da aguarela sobre papel, com algumas colagens. Mas a essência da sua pintura reside – como nos demais artistas dessa vaga da diáspora – nessas figurações expressionistas e abstractas, cheias de empastes, manchas, sobreposições de linhas, de riscos grossos e finos, de temas grumosos e tridimensionais, que conferem texturas e estruturas especiais aos quadros; bem como nas famosas transgressões figurativas, nas deformações e geometrismos abstractos, ou explosão de cores, que estão em consonância com os grandes dominadores dessas técnicas-estéticas, como um Kline, um Klimt, um Wols, um Kandinsky, um Pollock, um Kooning, etc..
Entretanto, ele detém uma particularidade interessante. Os seus abstraccionismos não são, na sua maioria, propriamente abstractos, na medida em que podemos descortinar, quase sempre, no meio do aparente caos de cores e linhas sinuosas e rectilíneas, figuras bem delineadas e expressivas, portadoras de um conteúdo latente e significativo. Ele faz um jogo de cintura, apelando à descoberta, ao utilizar realidades diversas disfarçadas em pseudo-abstraccionismos que discorrem entre o visível e o invisível, o perceptível e o imperceptível.
In: Cabo Verde: Algumas Vertentes do seu Universo Etnocultural, Danny Spínola